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Pratododia 

Pra todo dia, uma nova crônica do cotidiano. 

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PORTUGUESE VERSION: 

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                                                                Saúde humana em pequenas porções

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Certa ocasião todos os senis, doentes, loucos e deficientes da terra reuniram-se no topo da montanha mais alta e observaram lá de cima os saudáveis andando pelo mundo sem preocupação, vivendo ao sabor de seus afazeres e apetites. Os enfermos e sofredores viram as pessoas andando sobre suas próprias pernas, enxergando com olhos sem baço, sentindo o toque de todos os sabores e os beijos de todos os toques.

 

– A empáfia dos saudáveis não tem fim – disse por fim um leproso, tomado de repulsa. – Vivem pelo mundo com seus cabelos reluzentes e suas faces coradas e nada enxergam além de sua própria província. Insensatos! Pensam estar imunes ao nosso exílio!

 

– Não sabem o que é sofrer – cuspiu sangue um canceroso. – Não sabem o que é viver uma dor que transcende já o corpo e ocupa toda a experiência; não sabe o que é diminuir de tamanho até ser metade do que se era. Não sabem o que é ter um coração ou um par de rins que não se baste.

 

– Não sabem o que é minguar. Não sabem o que é ser esquecido e esquecer – lamentou tremendo um velhinho com mal de Alzheimer, mas ninguém entendeu direito o que ele disse.

 

– É preciso que façamos alguma coisa – sentenciou, calando a todos, o rei dos sofredores, que tinha o corpo coberto de chagas mas cuja voz era límpida e possante. – A história do mundo como a registram os livros é uma farsa! Uma farsa mentirosa e parcial! Quem contará a história do ponto de vista dos mudos que não falam, dos feridos que não levantam, dos tortos que murcham e dos encurvados que não desabrocham? Quem recita nossa poesia? Ninguém, eu lhes digo! Mesmo os mais alquebrados leitores tem alguma saúde, e nenhum de nós tem força ou sanidade para escrever ou falar a língua que os saudáveis podem entender. Quem contará a nossa versão da história e sairá em nossa defesa?

 

E todos baixaram as cabeças, porque não havia ninguém.

 

– Há um modo – disse um louco, e alguns conseguiram erguer a cabeça porque parecia haver na sua voz alguma esperança. – Creio que se cada um de nós abrir mão e derramar sobre este leito de rocha um dia sem sofrimento, um dia inteiro sem dor dos dias que nos restam, seremos capazes de destilar um homem saudável, um homem inteiro que fale por nós.

 

– Você pede que cada um contribua com um dia inteiro sem sofrimento! – comoveu-se o rei dos sofredores. – Mas esses dias nos são tão raros e preciosos! É injusto o que você está pedindo.

 

– Alguns de nós não terão um dia sem sofrimento para oferecer – lembrou um aidético.

 

– Se reunirmos as poucas horas de alívio que nos restam – apelou o louco que tivera a ideia. – É por uma boa causa.

 

– Teremos uma voz – consentiu o rei.

 

E todos concordaram. Cada um dos doentes e dementes e velhinhos derramou, dos dias que lhes restavam, um dia inteiro sem sofrimento sobre o leito cru da rocha no topo da montanha. Muitas semanas depois, quando o último sofredor se afastou, inteiramente exaurido, havia sobre a rocha um pequeno corpo corado, um bebê.

 

Esse menino foi criado entre os sofredores. Quando fez doze anos foi enviado solenemente ao mundo dos saudáveis para cumprir a sua missão.

 

– Apenas não esqueça de falar por nós – lembrou o rei dos sofredores ao rapaz que já descia a montanha. – Quem sabe eles ouçam e o mundo mude totalmente.

 

Anos depois o menino voltou, já homem feito, e apresentou o relatório da sua estada entre os saudáveis.

 

– Não adianta – ele disse, – eles não ouvem e não querem ouvir. Escrevi livros, dei palestras, visitei escolas, levei-os pela mão até junto dos leitos de hospitais e hospícios e prisões, mas seus olhos estão cegos e seus ouvidos fechados para este mundo. Eles nada enxergam além de sua própria bem-aventurança, e crêem que o mundo é escrito pelo seu sucesso em manter-se longe do rastro de sangue dos sofredores. Os saudáveis recusam-se a crer que gente como vocês tenha qualquer papel verdadeiro no mundo. O alarido da carne sã é alto, e não consegui me fazer ouvir.

 

– Isso é terrível – lamentou o rei. – Quer dizer que nosso sacrifício foi em vão.

 

– Penso – ousou dizer o sadio enviado entre os sofredores – que foi porque sou um só. Se houvesse mais um como eu, quem sabe eles ouvissem e o mundo mudasse totalmente.

 

Diante desse apelo todos os doentes e atormentados e tortos irmanam-se mais uma vez e espremeram cada um, de suas veias túrgidas e futuros ressequidos, um dia inteiro sem sofrimento para prover a um novo representante os dias necessários a uma vida inteira de saúde.

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O segundo emissário foi criado entre os sofredores pelo primeiro, e partiram juntos anos depois para o mundo das pessoas sãs, onde passaram um longo período. Com o tempo eles cansaram-se um pouco da inutilidade da sua tarefa, e resolveram investir nos dias de saúde que lhes restavam em atividade que desse maior retorno. Quando voltaram anos depois à Montanha da Dor, que é a mais alta do mundo e no topo da qual aguardavam os sofredores, os dois enviados relataram o mesmo fracasso que o primeiro havia enfrentado sozinho.

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– Não adianta – eles disseram – os sãos não ouvem e não querem ouvir.

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– Isso é terrível – lamentou o rei. – Quer dizer que nosso sacrifício foi em vão.

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– Talvez tenha sido assim – explicaram os emissários – porque somos apenas dois. Se houvesse mais dois como nós, quem sabe eles ouvissem e o mundo mudasse totalmente.

 

E é até hoje assim que são feitas as pessoas saudáveis.

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MARCUS VINICIUS LEITE - Jornalista e redator publicitário nas horas pagas e se aventura na escrita nas horas vagas. 

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ENGLISH VERSION: 


Human health in small portions

 

On a certain occasion, all the elderly, sick, insane, and disabled people on Earth gathered at the top of the tallest mountain and looked down from above at the healthy people going about their lives in the world without a care, living according to their chores and appetites. The sick and suffering saw people walking on their own legs, seeing with clear eyes, feeling the touch of all flavors, and the kisses of all touches.

 

"- The arrogance of the healthy knows no bounds," finally said a leper, overcome with disgust. "They roam the world with their shiny hair and rosy cheeks and see nothing beyond their own province. Fools! They think they are immune to our exile!"

 

"- They do not know what it is to suffer," a cancer patient spat blood. "They do not know what it is to experience a pain that transcends the body and occupies the entire experience; they do not know what it is to shrink in size until they are half of what they once were. They do not know what it is to have a heart or a pair of kidneys that do not suffice."

 

"- They do not know what it is to dwindle. They do not know what it is to be forgotten and to forget," trembled an old man with Alzheimer's, but no one quite understood what he said.

 

"- We must do something," the king of the sufferers declared, silencing everyone, his body covered in sores but his voice clear and powerful. "The history of the world as recorded in books is a farce! A deceitful and biased farce! Who will tell the story from the perspective of the mute who cannot speak, the wounded who do not rise, the crooked who wither, and the hunched who do not blossom? Who will recite our poetry? No one, I tell you! Even the most feeble readers have some health, and none of us has the strength or sanity to write or speak in a language that the healthy can understand. Who will tell our version of the story and come to our defense?"

And everyone hung their heads, for there was no one.

 

"-There is a way," said a madman, and some managed to raise their heads because there seemed to be some hope in his voice. "I believe that if each of us gives up and pours a day without suffering onto this bedrock, one whole day without pain from the days that remain to us, we will be able to distill a healthy man, a whole man who will speak for us."

 

"-You ask that each of us contributes a whole day without suffering!" the king of the sufferers was moved. "But these days are so rare and precious to us! What you are asking is unfair."

 

"- Some of us will not have a day without suffering to offer," reminded an AIDS patient.

"If we gather the few hours of relief left to us," pleaded the madman who had the idea, "it's for a good cause."

 

"- We will have a voice," the king agreed.

 

And everyone agreed. Each of the sick, insane, and elderly poured a whole day without suffering from their remaining days onto the raw bedrock at the top of the mountain. Many weeks later, when the last sufferer walked away, completely exhausted, there was a small, healthy baby on the rock.

 

This boy was raised among the sufferers. When he turned twelve, he was solemnly sent into the world of the healthy to fulfill his mission.

 

"- Just do not forget to speak for us," the king of the sufferers reminded the boy as he descended the mountain. "Perhaps they will listen, and the world will change completely."

 

Years later, the boy returned as a grown man and presented a report of his time among the healthy.

"It's no use," he said. "They do not listen and do not want to listen. I wrote books, gave lectures, visited schools, took them by the hand to hospitals and asylums and prisons, but their eyes are blind, and their ears are closed to this world. They see nothing beyond their own well-being, and they believe that the world is written by their success in staying away from the suffering of the sufferers. The healthy refuse to believe that people like you have any real role in the world. The clamor of the healthy flesh is loud, and I could not make myself heard."

 

"- That's terrible," lamented the king. "So, our sacrifice was in vain."

 

"- I think," ventured the healthy envoy among the sufferers, "it's because I am just one person. If there were one more like me, perhaps they would listen, and the world would change completely."

 

In response to this plea, all the sick, tormented, and twisted once again joined together and each squeezed a whole day without suffering from their swollen veins and future desiccated ones to provide a new representative with the days necessary for a lifetime of health.

 

The second envoy was raised among the sufferers by the first, and years later, they set out together to the world of healthy people, where they spent a long period. Over time, they grew somewhat weary of the futility of their task and decided to invest their remaining days of health in activities that would yield greater returns. When they returned years later to the Mountain of Pain, which is the tallest in the world and where the sufferers awaited at the top, the two envoys reported the same failure that the first had faced alone.

 

"-It's no use," they said. "The healthy do not listen and do not want to listen."

 

"- That's terrible," lamented the king. "So, our sacrifice was in vain."

 

"- Perhaps it was like this," the envoys explained, "because there are only two of us. If there were two more like us, perhaps they would listen, and the world would change completely."

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And that is how healthy people are made to this day.

 

MARCUS VINICIUS LEITE - Journalist and advertising copywriter during paid hours and ventures into writing during free time.

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